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AmazôniaA Médica e o Quati

Este é o relato de minha expedição à Amazônia de 30 de outubro a 8 de novembro de 2009. Fiquei na comunidade São Pedro, às margens do rio Andirá, como ginecologista integrante da ONG Expedicionários da Saúde. Foram dias de muita tensão e desconforto, mas também de muita emoção. Ao final de tudo, me sinto super recompensada e já penso em voltar.

Pontos Positivos

  1. O grupo é ótimo, pessoas genuinamente interessadas em fazer o bem e muito agradáveis de se conversar.
  2. Os banhos de rio, os índios, a Amazônia em si.
  3. A ausência de celulares tocando, despertadores, e-mails...
  4. Não ter que dirigir! Nosso “carro” são as voadeiras.

Pontos Negativos

  1. A falta que o meu amor me faz.
  2. O calor excessivo
  3. A falta de conforto
  4. Os insetos (as mutucas, mosquitos que parecem ter presas ao invés de probóscides e moscas em profusão).
  5. A falta de vaidade compulsória. Meus pés estão imundos pois aqui só usamos chinelos, o cabelo horroroso, nunca mais passei um perfuminho ou batom.
  6. Cheia de machucados nas pernas por causa das caminhadas e toda picada pelos mosquitos dinossauros.
  • Dia 1
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  • Dia 10

Acordo às 5 horas da manhã e às 6:30h estou no aeroporto de Viracopos, Campinas-SP. Encontro outros integrantes da missão vindos de São Paulo, capital, e do Paraná. Embarcamos no avião da FAB (Força Aérea Brasileira) rumo a Parintins- AM, com escala para abastecimento em Brasília. Após 5 horas de viagem, chegamos a Parintins e pegamos um tipo de barco chamado por lá de voadeira (provavelmente pela velocidade superior à das embarcações maiores) até a comunidade. Tentamos, mas não avistamos um boto sequer… Mais quatro horas e chegamos à comunidade de São Pedro, onde a etnia indígena majoritária é a Saterê-Mauê. Não atenderemos apenas os Saterês, muito antes desta expedição começar, a FUNASA, órgão parceiro da ONG, já mobilizou índios de locais distantes até São Pedro (alguns levam até quatro dias de barco só para chegar!)

Aqui no Amazonas são duas horas a menos no fuso horário, aportamos ao anoitecer e o calor está forte, um calor muito úmido. Em poucos minutos já estou (assim como outros expedicionários) me refrescando no rio, um bálsamo após quase dez horas de deslocamento. Como somos 42 pessoas e há apenas dois chuveiros, tomar banho no rio me parece uma opção mais convidativa do que a longa fila – e é o que faço. Como naquele ditado, “em Roma.

Ficamos basicamente em dois dormitórios. Um é de camas do exército, são 16 beliches. O outro é de pessoas que trouxeram suas próprias barracas e com isto têm mais privacidade. Mas sou marinheira de primeira viagem, fico com um dos beliches de cima mesmo. Logo nos avisam para nunca deixarmos as malas abertas ou colocar sapatos fechados sem dar uma boa olhada, pois algumas amigas costumam gostar de passar por ali. Tratam-se de aranhas caranguejeiras. Há várias pelo alojamento, mas elas são bem tranqüilas (afinal, nós é que somos os invasores).

Aqui não temos acesso à internet, os celulares ficam fora de área e nem despertador usamos. Urgências são (espero) resolvidas através de rádio. Acordo espontaneamente às 5:30h (7:30h em Campinas portanto) e temos nossa primeira reunião, no café da manhã. São passados esclarecimentos sobre a missão e como será trabalhar com os indígenas. Após o café eu e Magda, a ginecologista veterana (várias expedições “nas costas”) partimos junto com os dentistas para o nosso local de atendimento, do outro lado do rio. Para minha surpresa, pois deveríamos apenas atender casos clínicos, minha primeira paciente tem um mioma parido (uma situação em que um tumor benigno do útero sai pela vagina). É um caso cirúrgico e deslocamos a paciente até o pré-operatório. Em seguida atendo outro (!) caso cirúrgico, um abscesso tubo-ovariano, mas este caso, por necessitar de cirurgia de maior porte, é transferido para Parintins. Não dispomos de UTI, banco de sangue, seria colocar a vida da paciente em risco.

Na saída do consultório, uma visita inesperada: um quati domesticado. Brinco um tempão com ele (ou seria ela? Não sei ver o sexo de quatis!). Fico sabendo que ele (ou ela) é de uma das índias que atendemos. Para atender, contamos com a ajuda de intérpretes, pois uma boa parte das índias não fala português.

Passei muito mal à noite . Diarreia líquida, perdi a conta de quantas vezes fui ao banheiro. Acho que tive febre também, pois senti muito frio neste calor equatorial. Acordei prostrada e tive que tomar soro na veia… Ainda de manhã precisei operar a índia com o mioma. Felizmente o procedimento foi tranqüilo, pois não estava na minha melhor forma.

De tarde consegui ir ao consultório, e eu e Magda levamos bronca, pois voltamos após o escurecer de barco e havia risco de queda no rio ou de nos perdermos. Foi chato. De noite mais febre. É horrível ficar doente, ainda mais longe de casa e com pouco conforto… Nem consegui comer (a diarreia continua firme e forte, a paciente nem tanto). Ainda bem que médico é o que não falta por aqui! Passo “em consulta” com Traudi, que faz medicina antroposófica e me diz pra só tomar antitérmico se a febre chegar a 38,50. É o que acontece. Portanto, antitérmico e cama.

Acordo melhor, sem febre agora. A barriga ainda faz vários barulhos bizarros (ruídos hidroaéreos aumentados, rs) e mantenho cólicas fortes, mas sinto-me melhor. Quase abortei a missão. Além dessa diarreia chatíssima, a sala aonde atendemos, apesar do cuidado da equipe de logística que montou tudo, tem um ar refrigerado que não funciona, o calor é infernal, suo em bicas e fica muito ruim trabalhar. De vez em quando me refugio na sala dos dentistas, ao lado da nossa, com ar gelado e água idem. É curioso perceber que agora certas coisas que não valorizava, pela facilidade de acesso (água gelada, ar refrigerado…), agora tornaram-se itens cobiçadíssimos, como especiarias. Coca-cola então, quando consegui tomar, a sensação de prazer foi muito intensa. Percebo que o grupo também sente assim, se eu fosse antropóloga acho que conseguiria entender isto com mais propriedade.

De noite estou mais animada e me junto ao grupo para cantarmos ao som do violão. Como o gerador deixa de funcionar após um certo horário, ficamos no escuro, ou melhor, iluminados pela fantástica lua cheia. Fica muito claro, a lua é um dos grandes atrativos da nossa empreitada.

Algumas pessoas resolvem fazer uma trilha de manhã e vou junto. Árvores seculares, de troncos robustos, são presença constante. Cogumelos espalhados na relva ou sobre as árvores. Sinto falta de mais fauna.

À tarde vou atender e o calor está insuportável. Ao fim do atendimento o quatizinho está novamente fuçando a terra na frente dos consultórios. Acho que já me acostumei a esperar por ele no fim do dia.

Chego ao alojamento e converso com Martin, um dos coordenadores do projeto. Peço a ele que me coloque em uma sala com ar refrigerado, de preferência junto aos demais. Ele me garante que vai dar um jeito.

Boas notícias! Consigo uma sala no próprio alojamento, ao lado da oftalmologia, desta vez com ar e segurança. A sala é uma tenda de lona e disponho de um computador para passar as fichas de atendimento. Isto foi implementado nesta expedição e agora fica muito mais fácil ter um controle dos dados e até para uso em pesquisas futuras. Tudo graças à equipe da informática, voluntários como nós!

Hoje o dia rendeu bem, foram doze atendimentos de manhã e nove à tarde.

Passamos o maior susto: chega a nós a informação de que a voadeira de Takashi, um dos oftalmologistas que havia precisado partir antes, foi encontrada emborcada no rio Amazonas. Como só temos o rádio para comunicação, um grupo parte de barco para mais notícias. Descobrimos aliviados que ele embarcou em segurança no avião de volta.

De tarde fizemos bóia cross, muito divertido.

Hoje fiz meus últimos treze atendimentos, no período da manhã.

À tarde empacotamos tudo para a volta. De noitinha mais uma surpresa: fico sabendo que uma índia que estava indo de barco de sua aldeia até Parintins por trabalho de parto acabou parando em nosso alojamento, pois as contrações “apertaram”. Vou vê-la e a encontro na rede. Ao toque vaginal, ela está com 8 cm de dilatação (com 10 cm a criança nasce). A partir daí começa a correria. A bolsa se rompe ainda na rede e eu peço uma colchão para deitá-la. Aparece um colchão e colocamos a paciente nele, mas quando a toco novamente percebo que a criança está com a cabeça virada e que nesta posição não vai nascer. Tento fazer a manobra de rotação da cabeça com a mão mas do jeito em que estou, toda torta no colchão, não consigo apoio para rodar a criança. Tenho a ideia de pedir uma cadeira e a índia é colocada em posição de cócoras, apoiada por trás pelo Atui, cirurgião que me auxilia, juntamente com Ângelo, também cirurgião.

Percebo uma grande movimentação atrás de mim, o parto está sendo filmado por uma equipe de reportagem, mas estou bem preocupada com a possibilidade de não haver passagem para a criança. A índia tem 17 anos e corpo de criança, depois descubro que tem 1,44 m de altura. É seu primeiro filho, e chamamos isto de bacia não testada, não há como garantir que a criança consiga nascer por baixo pela pelve estreita da mãe. Lembro ainda que já está tudo guardado e que fazer uma cesárea seria impossível, pois até acharmos tudo nas caixas e esterilizarmos o material…_- “Calma, Priscila, vai dar certo, esta criança consegue vir por baixo”, repito para mim mesma como num mantra. A ideia da posição de cócoras funciona e consigo rodar a cabeça para a posição correta. Surge milagrosamente uma mesa ginecológica e a índia passa ao seu quarto local para ter o filho (rede, colchão, cadeira, mesa ginecológica). Tem
muita gente ajudando, colocaram um foco de luz na minha cabeça, aparecem como por passe de mágica a caixa de instrumentos para parto, anestésico, etc. Finalmente aparece a cabecinha e é uma comoção geral. Tem muito marmanjo chorando nesta hora. Felizmente a criança nasceu super bem, chorando. Respiro aliviada. É uma menininha. Descubro depois que em minha homenagem ganhou meu nome. Emocionante. Agradeço muito à grande ajuda de todos e fico feliz por poder ter ajudado e por poder ter sido ajudada.

Voltamos a Parintins. Assim que saímos do barco, uma profusão de celulares é sacada dos bolsos, todos falando ao mesmo tempo. Muito bom ouvir as vozes daqueles que amamos, dar e receber notícias.

Depois uma cervejinha gelada (porque ninguém é de ferro) e jantar. Comemos peixes nativos deliciosos.

Volta a Campinas. Chegamos tarde da noite, cansados e felizes.

 

Acho que a grande lição que carrego desta missão é o espírito de solidariedade. Não é todo mundo que sai do seu conforto para passar dez dias no meio do mato em condições às vezes adversas, simplesmente para ajudar aqueles que precisam. Nunca tinha feito trabalho voluntário, foi muito importante para mim. Espero poder manter estas amizades recém-iniciadas e voltar mais vezes.

 

Aos expedicionários com que tive a honra de trabalhar e conviver, aquele abraço!

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